domingo, 22 de julho de 2007

Como esquecer

Fotografia de RP

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?

As pessoas têm de morrer, os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?
Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas!

É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou de coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doida, devidamente honrada. É uma dor que é preciso, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos moí mesmo e que nos da cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrrássemos da carga que lhe damos, aceitando o que não tem solução.

Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos distrairmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos, amigos, livros e copos, pagam-se depois em conduídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Porque é que é sempre nos momentos em que estamos mais cansados ou mais felizes que sentimos mais falta das pessoas que amamos? O cansaço faz-nos precisar delas. Quando estamos assim, mais ninguém consegue tomar conta de nós. O cansaço é uma coisa que só o amor compreende. A minha mãe. O meu amor. E a felicidade. A felicidades faz-nos sentir pena e culpa de não a podermos participar. É por estarmos de uma forma ou de outra sozinhos que a saudade é maior.

Mas o mais difícil de aceitar é que há lembranças e amores que necessitam de afastamento para poderem continuar. Afonso Lopes Vieira dizia que Portugal estava tão mal que era preciso exilar-se para poder continuar a Pátria dele. Deixar de vê-la para ter vontade de a ver. Às vezes, a presença do objecto amado provoça a interrupção do amor. É a complicação, o curto-circuito, o entaralamento, a contradição que está ali presente, ali, na cara do coração, impedindo-o de continuar.

As pessoas nunca deveriam morrer, nem deixarem de se amar, nem separar-se, nem esquecer-se, mas morrem e deixam e separam-se e esquecem-se. Custa a aceitar que os mais velhos, que nos deram vida, tenham de dar a vida para poderem continuar vivos dentro de nós. Mas é preciso aceitar, é preciso sofrer, dar urros, murros na mesa, não perceber. E aceitar. Se as pessoas amadas fossem imortais perderíamos o coração. Perderíamos a releigiosidade, a paciência, a humanidade até.

Há uma presença interior, uma continuação em nós de quem desapareceu, que se ressente do confronto com a presença exterior. É por isso que nunca se deve voltar a um sítio onde se tenha sido feliz. Todas as cidades se tornam realmente feias, fisicamente piores, à medida que se enraízam e alindam na memória que guardamos delas no coração. Regressar é fazer mal ao que se guardou.

Uma saudade cuida-se. Nos casos mais tristes separa-se da pessoa que a causou. Continuar com ela, ou apenas vê-la pode destruir a beleza do sentimento, as pessoas que se amam mas não se dão bem só conseguem amar-se bem quando não se dão.

Mas como esquecer? como deixar acabar aquela dor? É preciso paciência. É preciso sofrer. É preciso aguentar.

Há grandeza no sofrimento. Sofrer é respeitar o tamanho que teve um amor. No meio de remoinho de erros que nos resolve as entranhas de raiva, do ressentimento, do rancor - temos de encontrar a raiz daquela paixão, a razão original daquele amor.

As pessoas morrem, magoam-se, separam-se, abandonam-se, fazem os maiores disparates com a maior das facilidades. Para esquece-las, é preciso chora-las primeiro. Esta é uma verdade tão antiga que espanta reparar como ainda temos esperanças de contorná-la. Nos uivos da mulheres nas praias da Nazaré não há "histerias" nem "ignorância" nem "fingimentos". Há a verdade que nós, os modernos, os tranquilizados, os cools, os cobardes, os armados em livres e independentes, os tanto-me fazes, os anestesiados temos medo de enfrentar.
Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há suplentes, não há calmantes, ilhas nas Caraíbas, livros de poesia - só há lembrança, dor e lentidão, com uns breves intervalos pelo meio para retomar o fôlego.

Esta dor tem de ser aguentada e bem sofrida com paciência e fortaleza. Ir a correr para debaixo das saias de quem for é uma reacção natural, mas não serve de nada e faz pouco de nós próprios. A mágoa é um estado normal. Tem o seu tempo e o seu estilo. Tem até uma estranha beleza. Nós somo feitos para aguentar com ela.

Podemos arranjar as maneiras que quisermos de odiar quem amámos de nos vingarmos delas, de nos pormos a milhas, de lhe pormos os cornos, de lhe compormos redondilhas, mas tudo isso não tem mal. Nem faz bem nenhum. Tudo isto conta como lembrança, tudo isso conta como uma saudade contrariada, enraivecida, embaraçada por ter sido apanhada na via pública, como um bicho preto e feio, um parasita de coração, uma peste inexterminável, uma barata esperneante: uma saudade de pernas para o ar.

O que é preciso é igualar a intensidade do amor a quem se ama e a quem se perdeu. Para esquecer, é preciso dar algo em troca. Os grandes esquecimentos saem sempre caros. É preciso dar tempo, dar dor, dar com a cabeça na parede, dar sangue, dar um pedacinho de carne.
E mesmo assim, mesmo magoando, mesmo sofrendo, mesmo conseguindo guardar na alma o que os braços já não conseguem agarrar, mesmo esperando, mesmo aguentando como um homem, mesmo passando os dias vestida de preto, aos soluços, dobrada sobre a areia da nazaré, mesmo com muita paciência e muita má vontade, mesmo assim é possível que não se consiga esquecer nem um bocadinho.

Quanto mais fácil amar e lembrar alguém - uma mãe, um filho, um grande amor - mais fácil deixar de amá-lo e esquecê-lo. Raio de sorte, ó lindeza, miséria suprema do amor. Pode esquecer-se quem nos vem à lembrança, aqueles de quem nos lembramos de vez em quando, com dor ou alegria, tanto faz, com tempo e com paciência, aqueles que amámos com paciência, aqueles que amámos sinceramente que partiram, que nos deixaram, vazios de mãos e cheios de saudades, esses doem-se e depois esquecem-se mais ou menos bem.
E quando alguém está sempre presente? Quando é tarde? Quando já não se aguenta mais. Quando já é tarde para voltar atrás, percebe-se que há esquecimentos tão caros que nunca se podem pagar. Como é que se pode esquecer o que só se consegue lembrar! Aí, está o sofrimento maior de todos. O luto verdadeiro. Aí está a maior das felicidades.

(Miguel Esteves Cardoso - como esquecer in Último Volume, Assírio & Alvim, 1996)

5 comentários:

Anónimo disse...

O AMOR é algo que cresce...Não chega, senta e apresenta-se como efectivo!
Não, ele bate á porta, pede pr entrar, sorri, mima, presenteia, partilha momentos únicos, desabafa palavras novas e faz a vida muito mais saborosa! Mas, como tudo o que cresce pode também definhar, o AMOR, sofre também oscilações.
Ora bolas!Mas este amor, que se partilha é dá entrega total, não deveria NUNCA ter retrocessos!Haveriamos de ter capacidade para limar o que vem e provoca o seu desmorenamento!Deveriamos antever essas causas e "espalhar óleo" na estrada para que elas derrapassem e "morressem", antes de nos atingir!

Mas, a falta deste atestado de óbito, apenas nos vem fortalecer.Essas causas tornam-nos, cada vez mais, pessoas capazes de viver a vida como ela se nos apresenta!

Um AMOR é sempre benvindo, mesmo que custe muito deixá-lo ir....Quem ama, sabe que tem que dar liberdade!Se o pássaro quer voar, abram a janela!

Mas nesse AMOR, essa liberdade legitimada, provoca essa dor que jamais nos larga...mesmo que nos faça crescer!

Por tudo isso, ora bolas o AMOR!
Por tudo isso, viva o AMOR!
Por tudo isso, vivam com muitos momentos de AMOR!

Dalaila disse...

Fantástico! Como sempre aliás, este blog não seria o mesmo, sem ti, bem eu diria que o mundo que te rodeia, e o que não rodeia, não seria o mesmo sem as tuas trocas, partilhas, dádivas.
Viva o amor, viva a saudade, viva quem vive, vive quem deixa viver, viva quem se sente, viva a quem viva.
E viva a quem por qualquer razão muda de vida.

Anónimo disse...

E, acima de tudo, VIVA A VIDA que me presenteia com pessoas com TU!

feniana disse...

li este texto há muitos anos e, agora, adorei rele-lo aqui.
tanto, que acabei de o roubar para o meu blog, sem a tua autorização!

bem hajas :)

Dalaila disse...

ladrão que rouba ladrão... cem anos de perdão, eu ontem roubeio-o ao livro da mesinha de cabeceira...
Eu acho este texto à MEC, mesmo.
Fica bem :)